O que é um livro enquanto objeto, senão o paradoxo de ser o espaço intelectual por excelência aliado a um prazer sensorial único, interlaçando ética e estética?
Folheando o livro, inspiramos o seu perfume que nos transporta para além do tempo e do espaço. Sentimos o prazer da rugosidade ou maciez aveludada do papel entre as mãos. Como um íman, o nosso olhar capturado deleita-se, vezes sem conta, na estética da capa. A arte da paginação contrapondo (des)alinhamentos de letras e espaços, entretece linhas sinuosas e alquebradas, veredas por onde passeamos em devaneio estético-corporal. Reverberam, ecoam e ampliam-se dentro de nós memórias que se desprendem das suas linhas, cujos ritmos se vão orquestrando, transformando-nos numa caixa de ressonânica emocional. Finalmente, saboreamos (saber vem de sabor) numa relação mágica e potencial, escritor-leitor, conteúdo-continente, a ortografia e a gramática da fantasia, re-criando outras histórias, re-encontrando novas paisagens e re-ligando intensas sensações. O livro in-corpora-se e permanece dentro transmutado. “O verbo ler, como o verbo amar e o verbo sonhar, não suporta o modo imperativo.”(Borges)
E os editores? Franco Maria Ricci, o “Éphémère” – apontando pela sonoridade das suas iniciais em francês, a transitoriedade, tema caro a Freud – é considerado um dos maiores editores pelo seu profundo sentido estético. E nós sabemos, através de Bion, que na mente “beleza é verdade e verdade é beleza” (Keats). FMR conversando com seu amigo íntimo, Jorge Luis Borges, sobre o desejo de construir o maior labirinto do mundo, é por este relembrado “que o maior labirinto é o deserto”. Os editores, solitários artesãos alquímicos, corporificam ideias em formas menos voláteis, permitindo-nos a ilusão de infinito. Esse dom de abolirem a morte, leva-nos a acreditar no reencontro do perdido, através da estética e da ética.
Desde a invenção da escrita, o livro como objeto tornou-se o paradigma da cultura. Forjada entre prazer e realidade, permite imaginar o reencontro pela interpenetração moebiana das dimensões sensoriais e representativas do conhecimento. A civilização dolorida com o sempre presente “demens” pulsional do homem, sonha com a purificação cognitiva do “sapiens” (Morin). Mas “sapiens” não está reduzido à representação sublime nem à sublimação branqueadora da pulsão, mas antes à possibilidade de expressar e significar a sensorialidade “demens” que nos habita. A psicanálise e a cultura falam-nos disso.
Entre belas histórias da origem da Editora Fenda e do rasgão fecundo que significou no panorama cultural português, deixo aqui a revêrie sobre o que vi, senti, ouvi, saboreei e soube, num fim de tarde de Abril, no requintado e vanguardista atelier de Manuel Aires Mateus, último prémio Pessoa, onde aconteceu pela mão do diretor da Culturgest, Delfim Sardo, a apresentação da nova Editora Verso de Vasco Santos: VS. “narcisicamente e poeticamente”. Os dois títulos inaugurais talvez definam num a-priori o caminho in-Verso e di-Verso que se propõe: permanecer em dúvida com os ditos, contraditos e interditos dos “Aforismos” (Karl Kraus), suportando a insustentável falta pela compreensão de que “A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer” (Stig Dagerman).
Imagem: Bibliothèque en Feu, 1974, Maria Helena Vieira da Silva
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