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Ana Belchior Melícias

Um beco sem saída é apenas um bom lugar para dar a volta


Teeter-Totter Wall (2020), projeto de Ronald Rael e Virginia San Fratello, instalado durante apenas cerca de 40 minutos, evocou/denunciou um utópico sentimento de unidade na fronteira divisória entre o México e os E.U.A., altamente politizada sob a administração Trump. O muro que bloqueia e separa transmutou-se em baloiço/balanço, brinquedo relacional que une ambos os lados. Brincar com e na realidade...


Mas, existiria o humano sem conflito?


Poderemos (con)viver sem crise?


Como nos desenvolveríamos sem confrontação?


O 'não' em termos desenvolvimentais, instala-se muito antes do 'sim' (Spitz). O bebé cedo necessita opôr-se para não se con-fundir e con-fusionar como se dissesse com José Régio: Não mãe, "não sei por onde vou / não sei para onde vou / sei que não vou por aí!"...

Na contemporaneidade, crise tornou-se palavra onipresente!


Mundo em crise, Europa em crise, crise dos refugiados, crise ecológica, ambiental e climática, crise de pobreza extrema vs a riqueza obscena, crise da corrupção, crise da internet, do ciberterrorismo, dos temores apocalípticos da IA, crise de género, crise das religiões, dos governos, das guerras nas eternas lutas fratricidas ...


Na noite de 10 de maio de 1933, sobre a Grande Queima de Livros pelos nazistas (Bücherverbrennung) em Berlim e outras 21 cidades alemãs, Freud comenta: "Que progresso! Na Idade Média, ter-me-iam queimado a mim. Hoje, contentam-se em queimar os meus livros." Não a podendo prever, menos ainda imaginar, intuiria ele a barbárie que se seguiria com os fornos crematórios? Pessoas, não livros...


Há muito ocupado com a complexa dinâmica das forças pulsionais, Freud elaborava sobre uma utópica saída civilizatória. Klein remexeu o caldeirão pulsional e trouxe de lá as forças destrutivas do ódio, na inveja que ele encarna. Mas trouxe também o impulso epistemofílico, elo onde Bion assentou a sua teoria do pensar. O que fazer dessa oscilação inconciliável entre os vínculos L (love) e H (hate)? Bion apontou a saída pelo K (knowledge) mas não o conhecimento racional, e sim aquele com sabor a sabedoria, prenhe de emocionalidade. Meltzer prossegue com a questão do conflito, o estético, como paradigma do desenvolvimento. Toda a psicanálise se funda na complementariedade dinâmica nature vs nurture, a partir de duas linhas principais: a luta pulsional e o funcionamento consciente vs inconsciente.


Expulsos do paraíso, teremos de aprender a tolerar o conflito, a ambivalência e a incerteza. Nostalgicamente aprisionados à aparente precisão do movimento das marés e do regular ciclo das luas, pós-freudianamente não poderemos no entanto negar as (im)precisões das inúmeras qualidades de marés e dos diferentes espectros de luminosidade da lua...


A intra, inter e transubjetividade entrelaçam-se e complexificam-se, gerando permanentemente crise, conflito, oposição, "...porque a nossa identidade é narrativa: faz-se, desfaz-se, refaz-se... E isto acontece na evolução, com os indivíduos, com os grupos, com os povos." (1)


Mas será crise equivalente a caos? Não estará antes relacionada com a (in)tolerância à incerteza, à diferença, ao outro/"não-eu"?


Debruçamo-nos na etimologia que, pela origem das palavras, abre caminhos inusitados.

"O estado de caos e incerteza está localizado no latim como crisis, sobre o grego em krísis, associado ao verbo krínein, tanto no sentido de julgar quanto na implicação de decidir ou separar. O verbo krínein aparece na construção de crítica (visíveis no grego kritikḗ), crime (registrado no latim crimen), critério (dado pelo grego kritḗrion) ou hipocrisia (observada no grego hypokrisía). (2)


Uma crise aponta sempre uma situação de incerteza, que implica a busca de uma solução, rápida para se recuperar a homeostasia, retomando o estado de "normalidade". Será essa ilusória "normalidade" o que nos caracteriza, ou será justamente o contrário - o conflito. Tanto em termos individuais como em termos sociais/institucionais.


"A palavra conflito, na língua portuguesa, refere-se à profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes (Houaiss, 2004). Este vocábulo vem do latim conflictus: desacordo, choque. Conflitos são como situações de crises, fazem parte da vida do ser em evolução e, de certa forma, não podemos conhecê-los totalmente nem predizer a sua evolução."


E as ideias sobre conflitos remetem, como diz Anselmo Borges, ao seu caráter antagónico e à angústia que se deseja ver sossegada: "A concepção de conflito parte do pressuposto baseado na teoria dos sistemas. Esta teoria demonstra que vivemos dentro de sistemas múltiplos, mais ou menos complexos, sendo cada sistema composto por elementos, suas atribuições e pelas relações entre estes elementos. Para que um sistema se mantenha é necessário que seus elementos conservem as diferenças, ou seja, as interações antagônicas. Se não existissem as diferenças os elementos se confundiriam um com o outro, entrariam em fusão e o sistema desapareceria. Por outro lado, se existissem somente as interações antagônicas o sistema entraria em colapso e se destruiria. Desta forma, o antagonismo não é nem destrutivo nem construtivo em si mesmo, mas um dos elementos da evolução e, como parte integral dos sistemas, não pode ser eliminado."(1)


Alerta-nos ainda, e muito psicanaliticamente, que muitas vezes "nos relacionamentos existem crenças que não diferenciam as concepções entre conflito e violência. Essa indiferenciação traz como conseqüência indivíduos com visão idealizada das relações e impotentes diante do cotidiano. Isto os predispõe a um padrão rígido de conduta reativa e passam a assumir uma posição na crença de que a violência esteja em seu opositor, sem considerar os aspectos dinâmicos e interacionais dos conflitos. Este tipo de conduta os impede de realizar um acordo ou desenvolver uma comunicação mais flexível, dificultando a possibilidade de solução."


"Mas (continua a etimologia) a passagem etimológica fala da capacidade de discernir em um cenário de profundas mudanças, pois o próprio étimo aponta já para uma possível oportunidade: de "opportunus - ob-portus": que impele para o porto. "Opportunitas" (oportunidade) significa precisamente "ocasião favorável". (2)


Li algures que "um beco sem saída é apenas um bom lugar para dar a volta" e acrescentaria que os muros não são fronteiras e as fronteiras são lugares de passagem.

A humanidade e a arte têm o condão de resistir, transformando criativamente os muros.


Referências

Imagem — Teeter-Totter Wall (2020), projeto de Ronald Rael and Virginia San Fratello.

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