O método psicanalítico tem na associação livre um dos instrumentos para aceder ao inconsciente. Mas, se pensarmos bem, a associação livre é a chave do pensamento criativo, do pensamento que ousa explorar os continentes ignotos da mente. Quando isso acontece, encontramos nexos imprevisíveis na própria realidade, como se tudo tivesse a ver com tudo (o princípio da analogia soberano).
Um Congresso – IV Congresso de Psicanálise de Língua Portuguesa, Rotas da Escravidão. Cabo Verde, Mindelo, São Vicente.
Um encontro científico, mas sobretudo, um encontro, intercontinental, inter-racial, interpessoal. Histórias de gentes nunca contadas e, agora, partilhadas com emoção, com música.
E a descoberta de uma memória comum numa língua com múltiplos acentos, vocábulos, que marcam a diferença e se tornam irreconhecíveis, a assinalar o desconhecido que foi recalcado e urge destapar, reconstruir.
Também a arquitectura, as casas coloniais em que se inscreve a história da colonização e se reescreve a história da libertação. Os sabores, a calidez, as paisagens.
Sodade, declinada na voz de Cesária, é a palavra que embrulha todos estes sentires. E descobrimos o sentido etimológico (estar só) que a evolução semântica, “saudade”, deixa encoberto.
Às vezes, também a realidade, como disse, funciona por acasos que têm algo de associação livre. O livro, o filme, a música que nos encontram.
Um desses acasos é a actual exibição do filme de Filipa Reis e João Miller Guerra– Djon, África—que dialoga com o que foi dito e pensado no Congresso.
Por um lado, há o fio da história: um jovem negro de origem cabo-verdiana, desenraizado na periferia lisboeta, parte para Cabo Verde à procura do pai que nunca viu. Da mãe também pouco se sabe, mas a avó, com quem vive, está no lugar do pai e da mãe.
A demanda do pai é, como se verá, o pretexto para descobrir (inventar) a sua identidade.
Essa ausência de identidade (estranho em Portugal, pela cor da pele e desenraizamento, “tuga”e “turista” em Cabo Verde) é a marca indelével dos caminhos da escravidão: homens, mulheres e crianças arrastados, à força, de África, para povoar ilhas desertas e outros continentes e condenados a trabalhar sem verem reconhecidos quaisquer direitos.
A ilha de S. Nicolau, no filme, é o lugar da beleza encantatória (apesar da pobreza) que nos faz recordar “Sodade” de Cesária:- “Quem mostra’bo esse caminho longe?/ Esse caminho pra São Tomé/… Sodade, sodade/ Sodade dessa minha terra, São Nicolau”- e a dor do exílio que é sempre uma despossessão (da identidade, da família, da terra). Li Ké Terra (É aqui a terra) é o titulo de um anterior documentário dos dois cineastas que pode ser visto como a pré-história de Djon, África.
As deambulações de Djon por Cabo Verde (Santiago- cidade da Praia, São Nicolau) deixam-nos surpreender, para além das paisagens, as gentes, com o seu jeito meigo e matreiro, e a música omnipresente. E, significativamente, Djon encontra, em São Nicolau, Maria (que beleza o seu rosto e altiva a pose!), a mulher solitária que, com as suas cabras, vive nas escarpas altaneiras e a quem chama “mãe”.
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