Bion diz que “os mitos são os sonhos da humanidade” e o Natal constitui-se inequivocamente como mito da origem da vida. Condensando as fantasias originárias, remete ao mito familiar pessoal e ao mundo interno enquanto narração mítico-onírica. Os seus ícones e rituais, produtos do sincretismo de lendas pagãs e cristãs, reportam-nos à intemporalidade do inconsciente.
A reunião familiar celebra a infância como paisagem-matriz da nossa história, reforçando ciclicamente os laços familiares como rede estruturante de afetos. Se, no entanto, as idealizações primárias forem reacendidas, trarão as inevitáveis e habituais des-ilusões.
O presépio configura a triangulação-psíquica-originária e o enigmático mistério da vida. A representação desta boa cena primitiva, leva-nos a considerar o ato sexual como o supremo ato de criação, apontando as questões do nascimento.
O menino Jesus “nas palhinhas deitado”, retrata nitidamente tanto a desejável narcisação inicial do bebé – his majesty the baby -, como a dificuldade posterior de abandonar a posição narcísica de “adoração”.
Os três reis magos e suas dádivas, transportam-nos ao valor dos tesouros, figurados na equivalência intercambiável do eixo inconsciente seio-fezes-pénis-bebés-dinheiro. Reenviando à elaboração da analidade sinalizam, pelo número três, a progressiva passagem para a genitalidade.
A troca de presentes promovendo o dar e receber num vasto espectro de tonalidades, simboliza os bons recursos – “mirra, incenso e ouro” – nas trocas eu/outro, mundo interno/externo. A construção desse espaço intermediário vai tecendo o laborioso fio das ligações amorosas.
O benevolente pai Natal, adivinhando e realizando magicamente os nossos desejos, envia à ilusão onipotente e estruturante dos primeiros estágios do desenvolvimento. Acompanhado por personagens fantásticos – elfos, gnomos e renas voadoras – habita o “Polo Norte”, só alcançável pela imaginação, favorecendo a criação da área da fantasia/pensamento, entre o prazer e a realidade. A sua entrada pela chaminé da casa – imaginada, mas nunca vista! – ilustra tanto a cena primitiva e a dor da exclusão edipiana, como o próprio nascimento.
A ceia natalina, pasto mental de iguarias, reanima o calor oral da relação precoce nutriz, fonte da vida psíquica. As fundadoras trocas emocionais da alimentação na díade mãe-bebé, posteriormente expandidas – mãe-bebé na família – e rotineiramente atualizadas à mesa, são aqui elevadas ao apogeu.
Finalmente, o pinheiro de natal traz de tempos ancestrais, marcando o solstício de inverno (hemisfério norte), a esperança num novo ciclo da natureza. A sua folha perene associada à vitalidade, as velas-luzinhas convocando o sol nos dias mais curtos do ano e as bolas-maçãs convidando férteis colheitas, despertam a esperança na renovação, confortando do inerente “frio” da vida. A decoração acolhedora da casa, revela o desejado e desejável encontro estético e fecundo das relações.
Esta festa mítica parece expressar e potenciar a perpétua dinâmica entre os elementos psíquicos mais infantis (narcísicos) e aqueles mais adultos (edípicos). Simbolicamente sobredeterminada, alude diretamente à tríade e à família, reavivando uma constelação de emoções, prazeres e memórias, mas também angústias e frustrações. Assim, o Natal torna-se uma época particularmente rica e turbulenta no processo analítico, agravada pelas férias/separação geralmente associadas. Catalisa a emergência de conteúdos arcaicos e fantasias subjacentes, reatualizando concomitantemente a angústia de separação das vivências internas precoces. Analista e analisando terão portanto acesso privilegiado à configuração desses elementos natalinos-psíquicos, reencenados num sonho-a-dois na relação transferencial.
Imagem: L’angoisse de la cheminée (Jean-Vincent Sénac)
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