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Maria Teresa Sá

Love you



Les souvenirs c’est quelque chose qui vous réchauffe de l’interieur et qui vous déchire violemment le coeur en même temps

Haruki Murakami, Kafka sur le rivage


Preâmbulo: Tal como os tapetes turcos guardam muitas histórias, também são assim as leituras a que um filme como Aftersun se presta e os lugares aonde nos leva. Estes são alguns dos meus.


Vários estudos e observações clínicas têm vindo a mostrar que alguns comportamentos e estados emocionais depressivos são cíclicos, têm um significado particular e retornam por ocasião de acontecimentos importantes, sem que na maior parte das vezes a pessoa esteja disso consciente. Dizem respeito a um dia ou a uma época do ano em que ocorreu um acontecimento muito infeliz, por exemplo a morte de um pai ou de um filho. Afectos dolorosos insuportáveis ou associados a situações nas quais nos sentimos impotentes ou responsáveis e que foram reprimidos, regressam e assombram-nos. Na literatura psicanalítica tomam o nome de “reacções de aniversário”. Também pessoas que na infância viveram dias de aniversário tristes têm tendência para sofrer depressões nestes dias e durante a sua vida, enquanto as que foram festejadas se sentem com mais frequência como que animadas por um sopro vital que as sustém.

Nos registos da mini DV, da polaroid, na neblina das suas memórias, nos mosaicos que a sua câmara mental e fantasia trazem e recriam, em vésperas do seu aniversário Sophie regressa às férias que passou com o pai há 20 anos, por altura de um outro aniversário próximo do seu, o do pai, data que ele não festejava, tal como os seus pais nunca o festejaram. Admirava-se Calum de ter chegado aos 30 anos e duvidava que chegasse aos 40. Pai e filha estão juntos, é isso que importa acima de tudo a Calum, e que se divirtam, o resto deverá ficar em silêncio.


Sophie está certamente em busca do conforto que lhe traz esse tempo feliz. “Precisamos de recordar os momentos felizes, para não duvidarmos que amámos e que fomos amados. Recordar é isso também, ter a certeza de ter estado vivo”, escreve a romancista Laurence Tardieu. Mas talvez Sophie tenha ainda a esperança de que numa sequência de imagens, uma lógica improvável lhe traga o que ficou por decifrar, a explicação para uma linha de vida trágicamente quebrada, um aftersun suavizante e reparador que, à semelhança daquele que o pai lhe espalhava nas costas com tanto cuidado, lhe acalme esta queimadura da vida.


Aftersun habita aquela zona privada onde as memórias mais preciosas da infância são guardadas. Como se lá estivéssemos, assistimos a momentos de uma delicada intimidade e ternura entre pai e filha, tão cúmplices, amorosos e intensos, quanto densos e complexos, na fugacidade de um vínculo que gostaríamos, como Sophie, que se prolongasse para além de um tempo de férias que termina sempre antes de tempo. Os momentos de rara beleza que respiramos num cenário azul marítimo e celeste, os passeios, excursões de mergulho, buffets de hotel e horas preguiçosas na piscina, num lugar onde nenhum ruido de telemóvel interrompe o fluir dos dias e das conversas, trazem-nos doçura e nostalgia. São magníficas as pinceladas impressionistas das explorações pré-adolescentes de Sophie, olhos e corpo perscrutando o mundo da diferença e despertando o desejo, prenúncio de descobertas e despedidas da infância. O karaoke, ousando enfrentar o beco sem saída diante do pai que a deixa só, é magistral : (…)Oh life is bigger/ It's bigger than you/ And you are not me/ The lengths that I will go to/ The distance in your eyes/ Oh no I've said too much/ I set it up/ That's me in the corner/ That's me in the spot-light/ Losing my religion/ Trying to keep up with you/ And I don't know if I can do it (…)


Paira na sala de cinema uma tristeza. Porque é que esta alegria estival nos traz tristes? Que dor é esta que subtilmente nos invade?


Aftersun fala-nos de Amor, da importância do pai na vida da filha, da importância da filha na vida do pai. Nas palavras de Sophie escutamos também a falta que o pai lhe fez e lhe faz e as interrogações sobre o porquê da sua vida familiar se ter organizado como se organizou. «Olho para cima e sinto que mesmo que não estejamos juntos estamos debaixo do mesmo céu, portanto estamos juntos» diz Sophie, mas é como se não a sentissemos suficientemente agasalhada por esta proximidade na distância e nenhum apelo a um bom objecto interiorizado nos aquece. Falta-nos o real de uma presença próxima. O «gostava que tivéssemos podido ficar mais tempo» percorre todo o filme.


São vários os momentos em que o tema da pertença e da precariedade dos laços, da perda, da separação e da partida são aflorados. Por si só estes sentimentos são de modo a unir os espectadores debaixo do mesmo céu enevoado, já os vivenciámos ou presenciámos, já os imaginámos ou sofremos. Os esforços deste pai under pressure para que não falte nenhum conforto à filha comovem-nos e confundem-nos, tanto quanto à filha, quando o pedido que parece não poder ser escutado é afinal outro, o de que o pai permaneça ao seu lado e vivo.


Tal como Sophie vê do pai para além do que ele lhe dá a ver, também a realizadora nos conduz a intuir mais do que as imagens nos mostram: uma ausência iminente, um presságio de uma última dança under pressure, uma última despedida num aeroporto.


«Quero que saibas que podes falar comigo sobre qualquer assunto à medida que fores ficando mais velha». Como Sophie, não sabemos (…) I think I thought I saw you try/ But that was just a dream/ Try, cry, fly, try/ That was just a dream/ Just a dream/ Just a dream, dream (…)


- Sinto-me um pouco em baixo, ou assim (…) já te sentiste como se tivesses tido um dia fantástico, não sei, é estranho, e chegasses a casa cansado e deprimido e a parecer que os teus ossos não funcionam ? estão apenas cansados. Tudo está cansado. E tu estás a afundar-te.


- Vá, Sophie, estamos aqui para nos divertir.


É notável este trabalho de realização e de actores que nos conduz a uma profunda identificação com as personagens: com as preocupações, a dor e o afundamento depressivo que Calum vive e de que quer a todo o custo proteger a filha, para lhe dar a segurança num esperado papel de pai, mas que não pode evitar que transpareça para lá das palavras alegres e tranquilizadoras e de uma respiração profunda de tai chi, vivências ressignificadas por Sophie, quando imagina ou reinterpreta o que aconteceu, com os seus olhos infantis agora adultos (nos momentos em que o pai aparece sozinho, em imagens desfocadas, por detrás, ou à distância); com Sophie, na sua inteligência vivaz, curiosidade e ternura, na investigação do estranho puzzle dos relacionamentos adolescentes e adultos, quando faz tudo o que está ao seu alcance para salvar o pai que adora e lhe provar que vale a pena viver a vida, culminando no momento comovente da canção de aniversário que pede ao grupo de excursionistas que lhe cante “For He’s a Jolly Good Fellow”. Calum num choro violento na solidão de um quarto vazio.


Vinte anos depois, acordamos no quarto de Sophie, no dia do seu aniversário. Sophie recebe os parabéns da sua companheira, antes de ir buscar o filho bebé, que chora. Pousa vagarosamente os pés - sustentação, enraizamento, equilíbrio do corpo e do ser - no tapete que admiraram juntos, que o pai trouxe da Turquia e que lhe deixou, lembrança de umas férias felizes. Este tapete conta uma história: Love You.


Charlotte Wells diz em entrevista que no seu filme deseja falar fundamentalmente de uma experiência feliz. Conta também que se baseou em acontecimentos autobiográficos e na morte do pai quando era adolescente. Virá a tristeza que nos invade durante o filme de uma profunda identificação com a realizadora, com a dor que Sophie guarda e nos transmite?


No écran mental de Sophie, memórias felizes são atormentadas por assombrações, interrompidas por flashes, transes na escuridão, em que tenta desesperadamente alcançar o pai para ainda o abraçar. Quanto mais nos aproximamos mais percebemos que Calum está confinado em algo de que não pôde escapar e de que Sophie não o pode salvar. Num memorável momento do filme, que agarra todo o nosso ser, dançamos Insanity laughs / Under pressure / we're cracking / WHY WHY WHY ?/ LOVE LOVE LOVE. Demoramo-nos depois, até podermos, numa despedida no aeroporto. Love you.


Encerra também Aftersun os fios da depressão parental - só amor não basta - e o peso que ela deixa sempre num filho? A dificuldade em fazer o luto de um trágico fim de vida? memórias que para preservar o laço e proteger da morte se poderão enredar numa busca estéril por respostas que paralisam o sujeito numa fidelidade ao passado e impedem que o futuro se ponha em movimento ? Why why why ? Poderemos por fim aceitar o que não pudemos salvar, a vulnerabilidade de um pai e a nossa, guardando o que pode ser guardado, continuar a viver e a sonhar?

Na câmara mental de Sophie, num corredor de aeroporto, Calum sai por uma porta que se fecha e ouve-se o choro de um bebé. É ele que agora importa salvar.


Why can't we give love one more chance? / And love dares you to care/ for the people on the edge of the night / And love dares you to change our way of / caring about ourselves.

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