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Elsa Couchinho [Psicanalista]

Ligar [ ı ]


Fotografia: Jorge Rolão Aguiar


Entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a ascensão nazi, surge O Mal-Estar na Cultura, obra em que Freud regressa a uma reflexão sobre o sujeito que se constitui e emerge na/da tragédia edipiana e a sua ligação com o colectivo humano, herdeiro da horda primitiva, esta última já iniciada em Totem e Tabu.

No plano individual e colectivo, a origem do mal-estar/doença está precisamente nas concessões/negociações necessárias para acomodar a lei, ou seja, renunciar aos primeiros objectos de amor acatando o tabu do incesto, e continuar a renunciar aos impulsos primitivos para escapar à barbárie. Vemo-nos assim confrontados com a ideia de uma solução que permite escapar à barbárie e que simultaneamente a engendra, ou seja, a barbárie não é exterior à cultura.

Confrontado com o exílio forçado e a progressão da sua doença, Freud continuará até ao final da sua vida empenhado em compreender a ligação entre Eros e Thanatos, forças de ligação e desligamento das pulsões, criatividade e destrutividade.

Ainda que esta última seja uma componente do humano e que de forma recorrente rompa o plano do imaginário e extravase para um plano concreto, a barbárie não deixa espantar.

No século XIX, a desflorestação de diversas regiões já se constituía como um fenómeno que gerava preocupação; em pleno século XX, a destrutividade da acção humana era já compreendida como afectando a existência de outras espécies, a vida dos rios e dos mares; mas é no século XXI que se vulgariza o termo ecocídio como forma de representar a destruição global do nosso habitat.

É também no século XXI que observamos como a exploração dos recursos naturais se encontra intimamente ligada à repetição do genocídio na República Democrática do Congo ou à actual guerra em Moçambique.

Considerar que a disputa pelos recursos naturais será a única causa será demasiado simplista, mas ela não deixa de estar presente em diversos conflitos que vão do Iraque ao Afeganistão, de Angola à Etiópia, passando pela Ucrânia e o Médio Oriente.

O ecocídio em curso parece dar conta da tenaz resistência de uma fantasia que representa a Mãe Natureza como fonte inesgotável de riqueza, rompendo os laços fraternos entre os sujeitos. A rivalidade toma conta da estranheza que o outro necessariamente evoca, tornando-o não num elemento que gera curiosidade, mas num elemento persecutório.

Esse outro/estranho, destituído da sua humanidade, será despojado da terra, e, tal como no romance homónimo de Ursula K. Le Guin, deambulará pelas áreas desérticas. Ao já referido genocídio no Congo, poderemos ainda acrescentar o que se desenrola há 70 anos na Palestina, o que atinge o povo do Sahara Ocidental ou os povos indígenas do continente americano e da Oceania. Povos destituídos da sua humanidade, os sub-humanos.

Nathalie Zaltzman, a propósito de catástrofes de tipo genocida ou totalitário, distingue o trabalho da civilização (transmissão individual das evoluções e transformações colectivas) e o trabalho da cultura (processo intrapsíquico, trabalhando na cura para a transformação da autodestrutividade, indissociavelmente individual e colectiva). Mas qual será o alvo desse trabalho da civilização e da cultura?

Para Laplanche, será um trabalho sobre a perda dos objectos investidos pela pulsão sexual, Eros e Thanatos entendidos como processos em que Eros não é apenas elemento de ligação, mas implica essa perda. Elaborar a perda e restabelecer a ligação do sexual será possível, para o autor, no plano mitológico e simbólico, ou seja, na cultura. Essa fonte de mal-estar…

E de barbárie…

Mark Fisher, em Realismo Capitalista, analisa diversos elementos da cultura que engendram e perpetuam o mal-estar e a barbárie apresentando-se como soluções para os mesmos. Mas terá de ser na e pela cultura que teremos de elaborar as perdas e encontrar a ligação que permite o sentido de pertença ao humano, juntamente com a ideia de que cada ser-humano representa a nossa espécie e é garante do humano.

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