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Fernanda Mendes

INTERLÚDIO


“Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade.”

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis


Na infância de Leo existia uma ponte sobre um ribeiro ladeado por árvores, no meio de um caminho de terra que ligava a quinta onde vivia a um pinheiral pertencente a uma família amiga de seus pais. Todos os inícios de dezembro, na expectativa de ali encontrar um pinheiro para fazer a árvore de Natal, Leo e a mãe percorriam aquele caminho. Partiam habitualmente a um sábado de tarde e lá passavam um par de horas – sua mãe olhando aos detalhes. No tempo da infância de Leo, em finais da década de 1980, era costume fazerem-se as árvores de Natal com pinheiros verdadeiros.


Na infância de Leo existia um rio, serpentando cidade afora, perto dos domínios da quinta e, nesta, ao centro, estava implantado um Palacete que, apesar de parcialmente em ruínas, revelava o esplendor de outrora.


Na infância de Leo existia um roseiral jardinado por sua mãe, no lado esquerdo da casa voltada para o rio e, nesse roseiral, a um canto, havia um jovem cipreste que crescia tomando os céus.


Na infância de Leo, ao fundo do roseiral, existia uma espécie de coreto que ficava coberto de flores na Primavera e que, nos tempos áureos do Palacete, terá sido palco de momentos de lazer e descanso – o rio e a paisagem abrindo-se em frente.


Na infância de Leo, junto ao Palacete, existia uma Capela, que era das áreas mais conservadas da quinta. Leo gostava de seguir uma passagem, que desaguava no centro da Capela, para lá ver as imagens de Cristo, Nossa Senhora e demais Figuras Santíssimas.


Um dia, já na juventude, movida pela enigmática chama Renascentista, e como quem regressa à cidade natal após anos de separação, Leo partiu para Florença.


Em Florença, vinda da Piazza della Signoria com os Uffizi do seu lado esquerdo, encontrou uma ponte de sonho atravessando o rio Arno, a Ponte Vecchio, preenchida por pequenas joalharias em cujas montras brilhavam variadíssimas peças preciosas. Foi arrebatada por um tal encantamento que, de todas as vezes que percorria a cidade, havia de retornar àquele lugar.


Em Florença, o rio serpentava cidade afora, marginado por Palácios, Palacetes, Museus, casas e árvores, entre as quais ciprestes. Um dia, inesperadamente, numa rua mais adentro, Leo deparou-se com a casa de Dante Alighieri.


Em Florença havia sítios de arte, lazer e descanso por todo o lado e muitos Palácios e Palacetes eram Museus rodeados de sumptuosos jardins – foi num recanto de um jardim sumptuoso que Leo veio a encontrar um roseiral.


Em Florença havia, ainda, além da sua magnífica Catedral, o Duomo, Igrejas e Capelas guiando o viajante.


Na cidade dos sonhos de Leo, existe uma velha ponte cintilante onde ela se encontra menina de sua mãe, dias antes do Natal, em busca de uma árvore.


Na cidade dos sonhos de Leo, os roseirais estão situados nos recantos de Palacetes restaurados e artistas e poetas habitam a alma das pessoas.


Na cidade dos sonhos de Leo, as ruínas são a desconstrução necessária à transformação futura e talvez não se morra, pois tudo se eterniza nos finais.


Recordo as reflexões de Freud em A Interpretação dos Sonhos sobre a importância, no sonho, das “experiências infantis” ou de “fantasias nela baseadas” de onde derivam os “próprios desejos oníricos”. Por isso, diz-nos, poder-se-ia descrever o sonho como “sucedâneo de uma cena infantil, modificada pela sua transferência para uma experiência recente”. Na impossibilidade, portanto, de renascer, a “cena infantil” teria de “contentar-se em regressar como sonho.” É, assim, que neste desenho tão breve quanto intemporal, ressurge uma claríssima imagem de uma infância, a de Leo, sonhada em cidade no futuro.


E se, na vida, tudo é tão eternamente transitório como um sonho que da infância (da humanidade) se vem repetindo (relembro o presépio), pois Freud nunca perde de vista os aspetos filogenéticos da nossa existência, será, enfim, como Shakespeare nos situa em A Tempestade: “Somos feitos da matéria que se tecem os sonhos, / E é um sono que coroa a nossa breve vida.”


Imagem: "A Adoração dos Magos" (Leonardo Da Vinci, 1482)

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