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Fernanda Mendes

Fábrica de uma natureza (in)existente


Ser ou não ser, é isso a questão Será mais nobre deixar que o espírito suporte Os golpes e as setas da fortuna ultrajante Ou erguer armas contra um mar de angústias E, não aceitando, pôr-lhes termo? Morrer, Dormir, Dormir e talvez sonhar.

W. Shakespeare, Hamlet

Para a Psicanálise, nos estádios iniciais de desenvolvimento, os seres humanos – os bebés – são acometidos de um conjunto de emoções primárias que apenas podem ser integradas através da presença de um cuidador atento, sensível e não invasivo, na maioria das vezes a mãe. Assim, um desenvolvimento saudável está indelevelmente ligado à existência de um cuidador que pelas suas capacidades afetivas e relacionais possa constituir-se, como diria Donald Winnicott, como uma “mãe suficientemente boa”. O bebé poderá, deste modo, passar com sucesso de um estádio inicial de completa fusão e indiferenciação para estádios posteriores de progressiva diferenciação e separação em relação à mãe. Podemos dizer, então, na senda de Melanie Klein, que o desenvolvimento psicológico evolui da experiência e da internalização da relação com a mãe enquanto objeto primário, e que esta, se for introjetada e se enraizar no ego com relativa segurança, formará as bases para um desenvolvimento satisfatório.

A realidade das nossas experiências, com efeito sempre relacionais, encontra-se, portanto, na interface entre o psicológico e o físico. Mas, nas últimas décadas, uma outra dimensão tem vindo paralelamente a desenhar-se ao nível dos sistemas associados à Internet, que parece emergir enquanto prolongamento das vidas das pessoas e facilitadora de uma menor delimitação entre as esferas pública e privada. É como se a figura se confundisse com o fundo a ponto de podermos, já, questionar se a Rede é uma extensão das pessoas ou as pessoas da Rede, algo que é favorecido pelo crescente avanço tecnológico, se pensarmos por exemplo nos smartphones e na panóplia de aplicações que temos “à mão” para estarmos sempre conectados. Assim, um estudo internacional de 2010-11 citado por Shoshana Zuboff (2019), em que estudantes universitários teriam de desconectar-se da Internet, revelou que a maioria dos participantes não conseguiu fazê-lo sequer por um dia inteiro, pois aperceberam-se que dessa conexão dependiam todas as suas necessidades logísticas, comunicativas e informacionais. E até mesmo deixarem de aceder apenas às redes sociais foi problemático, com os jovens a revelarem sentirem-se sozinhos e desorientados, “como se tivessem perdido partes de si mesmos”. Para Zuboff, os jovens encontram-se “imersos numa vida de colmeia”, experienciando o outro “como uma coisa” e experienciando-se a si próprios como “a coisa que os outros veem”, constituindo as respostas dos estudantes naquele estudo uma mensagem para todos nós, uma vez que “narram o ambiente mental e emocional da vida numa sociedade instrumentária com as suas arquiteturas de controlo comportamental, pressão social e poder assimétrico”.

Com efeito, considerando este tipo de interação de natureza projetiva/introjetiva e indiferenciada entre o sujeito e a Rede, com consequências também ao nível da desinformação e da propagação de fake news, ferramentas privilegiadas ao serviço de ideologias políticas radicais, podemos interrogar-nos: será a Internet, cada vez mais, uma estranha forma de vida? Haverá espaço, hoje, nas nossas sociedades marcadas por um capitalismo de vigilância (Zuboff, 2019) para o privado, apesar da corrida à proteção de dados? Ou não haverá bastidores neste caldo primordial que é a vida na Rede? Se a evolução traz consigo uma perda de imortalidade, como nos posicionamos face a este pulsar da parte primitiva da mente, com as suas defesas, designadamente ao nível da inveja – que sempre trabalha contra o reconhecimento da inevitabilidade do tempo e da morte – que vemos adensar-se?

No hay banda! There is no band! Il n’y a pas d’orchestre! This is all a tape recording. No hay banda, and yet, we hear a band! (…) It is an illusion! Listen! – ecoa lá para meio do filme Mulholland Drive (2001), obra-prima de David Lynch a marcar a abertura do século XXI.

De contornos surrealistas, poderíamos dizer que Mulholland Drive, tal como o sonho, é sobredeterminado e, também, passível de múltiplas hipóteses interpretativas, sendo que aqui seguirei apenas algumas ideias soltas. Assim, sentimo-nos, desde logo, cativados pela apresentação de um amor trágico vivido por Diane, atriz em depressão (psicótica) e suicida que não consegue vencer na cidade dos sonhos, Los Angeles, acabando por sucumbir perante uma indústria de cinema abusiva, em que se adivinham desilusões várias (castings duvidosos, relações profissionais indefinidas, corrupção, …). Diane procura uma relação amorosa de completação (espécie de duplo de si própria) com Camilla, uma bem-sucedida e sensual atriz, mas por quem acaba sentindo-se traída, pois esta está já noiva de Adam, um realizador de cinema oprimido pela máquina hollywoodesca. Perante a insuportabilidade do real, apenas restará a Diane uma última possibilidade, a da realização alucinatória do desejo (na psicose, como no sonho), retrocedendo no tempo até ao dia da chegada a Los Angeles (ou até aos primórdios da sua vida, pois adivinha-se uma falha ao nível da relação primária). Se ao menos pudesse regressar ao primeiro dia e começar de novo, descobrir-se Betty, chegando a casa de sua tia Ruth (que se encontra em viagem) e ver Rita entrando-lhe pelo quarto. Rita sofrera um acidente de carro ali perto, na Mulholland Drive, que a deixara sem memória e, ajudada por Betty, irá tentar recuperá-la.

Mas, sem possibilidade aqui de reconstrução, a recordação será a estrada para a desilusão e esse momento, em Club Silencio, onde Betty/Diane e Rita/Camilla assistem a uma performance musical sem músicos, apresentada por um Ilusionista de aparência oracular, marca a rutura catastrófica em Diane – exposta a fratura no seu mundo interno, vê-se impossibilitada de tolerar a dor de uma ferida incurável que só pode conduzir à destruição e à morte (note-se que Lynch não nos deixa desamparados e oferece-nos uma canção – Lhorando – pela voz de Rebecca Del Rio).

Simultaneamente, Club Silencio parece, também, antever um futuro onde versões do real transcorrerão num cenário em que tudo venha a ser, afinal, uma ilusão. É atualmente manifesto o risco de duplicação (repetição) do lugar das coisas da vida, que vem resvalando da realidade de carne e osso, por assim dizer, para a realidade virtual – fábrica de uma (alter) natureza humana (in)existente, da qual o metaverso apenas talvez represente uma fase de transição.

É como se Lynch nos propusesse sonhar consigo o futuro, neste campo dinâmico que é a relação entre o artista e o seu apreciador, para juntos erguermos armas e não deixarmos esmorecer o vínculo do conhecimento. É sempre possível lutar pela nossa singularidade de corpo e alma neste espaço-tempo irrepetível em que cada um de nós vai acontecendo – e desejar que mais bebés sejam aconchegados ao peito de suas mães e nos seus braços adormeçam, porventura embalados pelas suas vozes. É que se “a essência da vida”, como refletiu Freud em “O Mal-Estar na Civilização”, reside na luta entre Eros e Thanatos, então é esse “combate titânico que as nossas amas querem apaziguar com uma canção de embalar”.

Freud, S. (1930). O Mal-Estar na Civilização. Relógio d’Água Editores, 2008. Shakespeare, W. (2015). Hamlet – Trad. Sophia de Mello Breyner. 1ª ed. – Assírio e Alvim. Zuboff, S. (2019). The Age of Surveillance Capitalism: The fight for a human future at the new frontier of power. PublicAffairs. New York.

Imagem: Mulholland Drive (2001)

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