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Rita Marta

A vida em tempos de Corona




Veio o Corona.

No início eram os chineses, e as velhas questões racistas começaram a emergir: na rua eram olhados com desconfiança, aos poucos as pessoas deixaram de ir a restaurantes e a lojas dos chineses.

Rapidamente, não foi só o Corona que se espalhou, foi também o medo, a sensação de perigo iminente. Foi um contágio viral, à medida deste mundo digital e globalizado.

Mas perigo de quê, perguntei-me? Se o seu poder patogénico não seria superior ao da gripe A, se são as pessoas com maiores fragilidades que verdadeiramente correm perigo de vida?


Por vezes oiço que a sua perigosidade se deve ao seu desconhecimento, ao facto de se saber ainda pouco sobre ele, a sua estranheza, portanto. Eclode assim uma angústia do estranho, do desconhecido, incontrolada?

Outras vezes, que o seu perigo tem a ver com a facilidade de contágio. Será então o risco deste mundo globalizado que aboliu fronteiras e nos deixa desprotegidos, dos vírus e das nossas fronteiras e segurança identitária?


Entretanto, foram conferências, encontros e espetáculos cancelados, viagens de família abortadas, muitas vezes com mais receio de serem obrigados a ficar fechados no quarto do hotel em quarentena obrigatória do que do Corona. A angústia xenofóbica (do grego Xeno = estranho, Phobos = medo), o medo do outro diferente e desconhecido, oscilava assim com uma angústia claustrofóbica (medo de ficar fechado, sufocado), o medo da perda de liberdade e o medo do isolamento (isolado dos outros).


No consultório, alguns pacientes contam como as suas famílias (aquelas que quando crianças os fecharam em casa com medo dos perigos do mundo exterior), se fecham agora num bunker, depois de encherem o frigorífico e a dispensa de casa. Outros, mais depressivos, com histórias de abandono e negligência, temem que eu adoeça e deixe de estar disponível para os acolher. Ou hesitam na porta de entrada em apertar-me a mão com receio de uma recusa da minha parte em tocar-lhes.


Cortam-se os contactos pessoais corpo-a-corpo e elogia-se este mundo virtual que afinal se torna o último reduto de segurança.

Fecham-se empresas e escolas. A economia, que não se dá bem com a quarentena, sofre o pior dos sintomas virais: mais graves do que os sintomas do Corona (3000 mortes ambas com o Corona na enorme China e com a gripe sazonal em 2019 neste minúsculo Portugal!), parecem ser os efeitos à escala mundial do corte da livre circulação de pessoas e bens. Afinal, ao contrário do que os Media gritam ao megafone, o perigo parece residir mais nesta ferida ligada à constatação da nossa impotência, e da nossa interdependência do resto do mundo, sem o qual nos começam a faltar remédios e comida… E aí, não há mundo digital que nos salve!


Na rua, sempre que tusso, olho à minha volta preocupada. Parece que também a tosse se tornou politicamente incorreta…

E ao mesmo tempo, por todo o lado, há uma conversa e uma vulnerabilidade partilhadas, aquela que nos coloca a todos no mesmo barco, o da humanidade, com as suas vulnerabilidades, os seus mistérios, as suas dependências… Deixamos os guetos do nosso individualismo e lutamos contra um inimigo comum.

Mas gradualmente as ruas desertificam-se…

Mais contagioso do que o Corona é o medo. O pânico faz as multidões atropelarem-se… Esvaziam-se supermercados e farmácias… Hoje a comunicação social escrevia “Pandemia do medo”…


Coloquemos então os nossos fantasmas de quarentena, juntamente com o Corona, cumprimentemo-nos com o cotovelo, e olhemos a realidade.

Na mesa ao lado da minha uma rapariga conta ao telefone, a maravilha que é o contágio amoroso com o namorado… Fiquei mais feliz.


Imagem: Rene Magritte, Os Amantes


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